SP: cindibilidade e integralização
1VRP/SP: A razão para se afastar a cindibilidade reside na impossibilidade de que a conferência de bens seja parcial, em desacordo com as deliberações societárias registradas na JUCESP. Somente o valor que excede o limite do capital integralizado está sujeito à incidência do ITBI
Processo 1067945-75.2023.8.26.0100
Dúvida – Registro de Imóveis – 2SIS Administração e Participações Ltda. – Diante do exposto, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE a dúvida suscitada apenas para afastar o óbice relativo à necessidade de comprovação do recolhimento do ITBI, desde que observados o correto preenchimento da declaração de imunidade junto ao município de São Paulo e seu respectivo prazo de validade. Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios. Oportunamente, remetam-se os autos ao arquivo. P.R.I.C. – ADV: CAROLINA SVIZZERO ALVES (OAB 209472/SP)
SENTENÇA
Processo Digital nº: 1067945-75.2023.8.26.0100
Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis
Suscitante: Décimo Cartório de Registro de Imóveis
Suscitado: 2SIS Administração e Participações Ltda.
Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad
Vistos.
Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 10º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de 2SIS Administração e Participações LTDA diante da negativa de registro de certidão da JUCESP extraída de instrumento particular de constituição de sociedade empresária limitada, por meio do qual houve integralização do capital social mediante conferência de três imóveis, inclusive aquele objeto da matrícula n. 115.885 da serventia (prenotação n. 595.913).
O Oficial informou que os sócios Luciano e Andréa integralizaram o valor de R$ 7.290.078,00 mediante a transferência de três imóveis à sociedade, mas, tendo em vista que o imóvel objeto da matrícula n. 154.808 é de propriedade de Trisul Celastrus Empreendimentos Imobiliários SPE LTDA, a parte suscitada requereu o registro somente em relação ao imóvel da matrícula n. 115.885; que a integralização do capital social mediante conferência de bens é um ato jurídico único, cujo registro fracionado vai de encontro ao princípio da segurança jurídica, pelo que impossível a cindibilidade do título, conforme orientação do Conselho Superior da Magistratura (Apelação Cível n. 0000048-59.2016.8.26.0531); que a solução dada por esta 1ª Vara de Registros Públicos ao processo de autos n. 1031566-38.2023.8.26.0100 não se aplica ao presente caso; que, em observância aos princípios da disponibilidade e da continuidade, o registro do compromisso de compra e venda relativo ao imóvel da matrícula n. 154.808, datado de 16/09/2018, deve preceder ao registro do instrumento de constituição da sociedade e integralização do capital social; que o valor venal de referência do imóvel objeto da matrícula n. 115.885 é superior ao valor atribuído pela parte suscitada, pelo que necessária a apresentação da guia e do comprovante de recolhimento do ITBI sobre a parcela do valor do imóvel que superou o montante do capital integralizado, conforme entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no Tema n. 796 de Repercussão Geral; que o Parecer Normativo SF n. 01/2021, do município de São Paulo, passou a aplicar o entendimento do STF para fatos geradores ocorridos após 25/05/2021; que a declaração apresentada ao município de São Paulo visando ao reconhecimento da imunidade do ITBI está vencida.
O Oficial esclareceu, ainda, que as exigências relativas à apresentação da certidão de casamento dos sócios Luciano e Andréa e da procuração outorgada pela parte suscitada à advogada foram atendidas.
Documentos vieram às fls. 07/78.
Em manifestação dirigida ao Oficial, a parte suscitada aduz que todas as exigências impostas são incabíveis; que a transferência de bens se destina à constituição do capital social da pessoa jurídica, não à formação de reserva de capital; que o pedido se restringe ao imóvel da matrícula n. 115.885; que se transferiram os direitos sobre o imóvel da matrícula n. 154.808, não a propriedade, cabendo somente à Junta Comercial do Estado de São Paulo analisar a legitimidade ou a ilegitimidade da referida integralização; que o Oficial não pode recusar o registro do título em relação a um imóvel sob o fundamento de que o outro, em relação ao qual não houve pedido, não está registrado em seu nome; que o Tema n. 796 de Repercussão Geral não se aplica, já que, naquele caso, parte dos imóveis foi transmitida como reserva de capital; que deve prevalecer a imunidade prevista no artigo 156, § 2º, inciso I, da Constituição Federal, e no artigo 37, caput, do CTN; que inexiste, na hipótese, excedente ao limite do capital social integralizado, sendo atribuído valor aos imóveis conforme autorizado pelo artigo 23 da Lei n. 9.249/1995; que houve a pacificação da questão no Tema n. 1.113 do STJ (fls. 18/26, 60/61 e 64). Nestes autos, porém, não houve impugnação (fl. 79).
O Ministério Público se manifestou pela procedência parcial (fls. 82/85).
É o relatório.
Fundamento e decido.
De início, vale destacar que o Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (art. 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.
De fato, no sistema registral, vigora o princípio da legalidade estrita, pelo qual somente se admite o ingresso de título que atenda aos ditames legais.
Em outras palavras, o Oficial, quando da qualificação registral, perfaz exame dos elementos extrínsecos do título à luz dos princípios e normas do sistema jurídico (aspectos formais), devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.
É o que se extrai do item 117 do Cap. XX das Normas de Serviço:
“Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais”.
No mérito, porém, a dúvida é parcialmente procedente. Vejamos os motivos.
De acordo com o instrumento particular de constituição de sociedade empresária limitada, firmado em 05/01/2023, Luciano Quinteiro Consentino e sua esposa, Andréa Cardia Consentino, transferiram três imóveis à parte suscitada a título de conferência de bens para integralização de seu capital social, dentre eles os imóveis das matrículas n. 115.885 e 154.808 do 10º Registro de Imóveis da Capital (item V e subitens 1 e 2 do contrato social fls. 10/13, 14/17, 29/37, 45 e 62).
Em 28/02/2023, houve pedido de registro somente da transferência do imóvel da matrícula n. 115.885 (fls. 60/61), mas o Oficial entende como impossível a cindibilidade do título para registro apenas na matrícula em questão, pois também foram integralizados direitos sobre outro imóvel da serventia, em relação ao qual compromisso de compra e venda pende de registro (matrícula n. 154.808 fls. 14/17).
Pelo princípio da cindibilidade dos títulos, é possível o registro parcial dos direitos neles constantes desde que não guardem relação de dependência ou unicidade entre si.
A seu respeito, o E. Des. Artur Marques da Silva Filho, por ocasião do julgamento da Apelação Cível n. 0027539-71.2014.8.26.0576, bem observou em voto convergente:
“Ademais, como havia sido exposto em 27.1.2015, no julgamento da Apelação Cível 300543-41.2013.8.26.0601, deste E. Conselho, o princípio da cindibilidade implica o seguinte:
a) a cisão possível é a do título formal (= do instrumento), e não do título causal (= do fato jurídico que, levado ao registro de imóveis, dá causa à mutação jurídico-real);
b) a possibilidade de cisão decorre do princípio da unitariedade (ou unicidade) da matrícula (LRP/73, art. 176, I); e
c) o título formal pode cindir-se em dois casos: ou quando um mesmo e único título formal disser respeito a mais de um imóvel; ou quando um mesmo e único título formal contiver dois ou mais fatos jurídicos relativos a um mesmo e único imóvel, contanto que esses fatos jurídicos não constituam uma unidade indissolúvel”.
A integralização do capital social mediante conferência de bens, por sua vez, é ato jurídico único: é necessário que todos os bens sejam transmitidos à pessoa jurídica, sob pena de os registros imobiliários ficarem em desacordo com os atos constitutivos registrados na Junta Comercial.
Neste sentido, decisão do Conselho Superior da Magistratura na Apelação Cível n. 0000048-59.2016.8.26.0531, julgada em 02/02/2017 e relatada pelo Corregedor Geral da Justiça à época, Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças:
“REGISTRO DE IMÓVEIS – Dúvida registrária – Integralização do Capital Social por meio de certidão da JUCESP – Incidência da regra do artigo 64 da Lei n.º 8.934/1994 – Inaplicabilidade do artigo 108 do Código Civil – Impossibilidade, contudo, de cindibilidade do título – Recurso desprovido”.
Como já dito, a razão para se afastar a cindibilidade reside na impossibilidade de que a conferência de bens seja parcial, em desacordo com as deliberações societárias registradas na JUCESP.
De fato, no processo de autos n. 1031566-38.2023.8.26.0100, a cindibilidade do título se deu de forma excepcional e porque já havia ocorrido a transferência da maior parte dos imóveis dos proprietários à parte suscitada.
Neste caso, verifica-se que a proprietária tabular do imóvel da matrícula n. 154.808 é a sociedade Trisul Celastrus Empreendimentos Imobiliários SPE LTDA, razão pela qual somente os direitos de compromissários compradores dos sócios Luciano e Andréa foram transferidos à parte suscitada mediante integralização do capital social (fls. 14/17 e 31).
No contrato social, há informação de que o compromisso de compra e venda foi celebrado em 16/09/2018 (item 2 fl. 31).
Mesmo após a emissão das notas devolutivas, a parte reiterou que o pedido se restringe ao imóvel da matrícula n. 115.885 e não tomou nenhuma providência para regularizar o imóvel da matrícula n. 154.808 (fls. 18/26, 54/56 e 57/59).
Dessa forma, não há situação excepcional capaz de permitir a cindibilidade do título no presente caso: além de a parte não ter apresentado o compromisso de compra e venda ao Oficial para qualificação, não há notícia de que houve registro da transferência da propriedade do imóvel da matrícula n. 50.426 do Registro de Imóveis de Bragança Paulista à pessoa jurídica (item 3 fls. 31/32).
Note-se que, justamente para que os direitos de compromissários compradores (e não a propriedade) dos sócios Luciano e Andréa sejam transferidos à parte suscitada mediante conferência de bens, é necessário o prévio registro do compromisso de compra e venda datado de 16/09/2018, tudo em observância aos princípios da disponibilidade e da continuidade.
Posteriormente, o registro da transferência dos imóveis das matrículas n. 115.885 e 154.808 do 10º RI da Capital deverá ser feito em conjunto.
Quanto à necessidade de comprovação do recolhimento do ITBI sobre a parcela do valor do imóvel que supostamente superou o montante do capital integralizado (valor venal de referência – fls. 65 e 69), não se desconhece que, para os registradores, vigora ordem de controle rigoroso do recolhimento do imposto por ocasião do registro do título, sob pena de responsabilidade pessoal (art. 289 da Lei n. 6.015/73; art. 134, VI, do CTN e art. 30, XI, da Lei n. 8.935/1994).
Entretanto, o Egrégio Conselho Superior da Magistratura já fixou entendimento no sentido de que a fiscalização devida não vai além da aferição sobre a existência ou não do recolhimento do tributo (e não se houve correto recolhimento do valor, sendo tal atribuição exclusiva do ente fiscal, a não ser na hipótese de flagrante irregularidade ou irrazoabilidade do cálculo).
Nesse sentido, os seguintes julgados do E. Conselho Superior da Magistratura:
“Ao oficial de registro incumbe a verificação de recolhimento de tributos relativos aos atos praticados, não a sua exatidão” (Apelação Cível 20522-0/9- CSMSP – J.19.04.1995 – Rel. Antônio Carlos Alves Braga).
“Todavia, este Egrégio Conselho Superior da Magistratura já fixou entendimento no sentido de que a qualificação feita pelo Oficial Registrador não vai além da aferição sobre a existência ou não de recolhimento do tributo, e não sobre a integralidade de seu valor” (Apelação Cível 996-6/6 CSMSP, j. 09.12.2008 – Rel. Ruy Camilo).
“Este Egrégio Conselho Superior da Magistratura já fixou entendimento no sentido de que a qualificação feita pelo Oficial Registrador não vai além da aferição sobre a existência ou não de recolhimento do tributo, e não sobre a integralidade de seu valor” (Apelação Cível 0009480-97.2013.8.26.0114 – Campinas – j. 02.09.2014 – Rel. des. Elliot Akel).
Nessa mesma linha, este juízo vem decidindo pela insubsistência do óbice quando não caracterizada flagrante irregularidade ou irrazoabilidade do cálculo (processo de autos número 1115167-78.2019.8.26.0100, 1116491-06.2019.8.26.0100, 1059178-53.2020.8.26.0100, 1079550-52.2022.8.26.0100, 1063599-18.2022.8.26.0100, 1039109-29.2022.8.26.0100 e 1039015-81.2022.8.26.0100).
No caso concreto, verifica-se que parte do capital social da empresa foi integralizado pelos sócios Luciano e Andréa mediante conferência dos imóveis objeto das matrículas n. 115.885 e 154.808 do 10º RI da Capital e 50.426 do Registro de Imóveis de Bragança Paulista, pelo valor de R$ 7.290.078,00 (fls. 30/32).
Considerando que o pedido da parte suscitada se restringiu ao imóvel da matrícula n. 115.885, o valor informado à municipalidade na declaração de imunidade de ITBI foi de R$ 1.799.199,17 (fl. 53).
Ainda que a parte suscitada não tenha demonstrado que a transferência do imóvel para a pessoa jurídica observou o valor constante da declaração de bens da pessoa física, conforme autorizado pelo artigo 23 da Lei n. 9.249/95, o preenchimento da declaração de imunidade do ITBI tomando por base o valor da transação não se mostra flagrantemente incorreto, notadamente diante das teses fixadas pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial n. 1.937.821/SP (processo-paradigma do Tema n. 1.113), sob a sistemática dos Recursos Repetitivos:
“a) a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação;
b) o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (art. 148 do CTN);
c) o Município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido unilateralmente”.
Cumpre destacar que somente o valor que excede o limite do capital integralizado está sujeito à incidência do ITBI, conforme tese firmada pelo STF para o Tema n. 796 de Repercussão Geral, nos seguintes termos:
“A imunidade em relação ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado”.
Nesse contexto, há que se concluir que incumbe apenas à municipalidade questionar as informações prestadas pelo contribuinte imune e exigir o que entender devido pela via adequada, se o caso.
Porém, tendo em vista que a integralização do capital social mediante conferência de bens é ato jurídico único, a declaração de imunidade de ITBI deve abranger o valor dos dois imóveis localizados no município de São Paulo que foram transferidos à pessoa jurídica, com apresentação dentro do prazo de validade de 30 dias, conforme previsto na própria declaração (R$ 1.799.199,17 e R$ 1.101.650,30 fls. 31 e 53).
Diante do exposto, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE a dúvida suscitada apenas para afastar o óbice relativo à necessidade de comprovação do recolhimento do ITBI, desde que observados o correto preenchimento da declaração de imunidade junto ao município de São Paulo e seu respectivo prazo de validade.
Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.
Oportunamente, remetam-se os autos ao arquivo.
P.R.I.C. São Paulo, 05 de julho de 2023. Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad Juiz de Direito
DJE/SP 07.07.2023
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