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Isabel N. Sangali

As sutilezas da cláusula de reversão nas doações


O Código Civil, em seu artigo 538, define doação como “...o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra...”.

Nas palavras de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, doação é “...um negócio jurídico firmado entre dois sujeitos (doador e donatário), por força do qual o primeiro transfere bens móveis ou imóveis para o patrimônio do segundo, animado pelo simples propósito de beneficência ou liberalidade...” (Novo Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2008, p.95).

O contrato de doação subdivide-se em algumas espécies, dentre elas, na doação com cláusula de reversão, que é o objeto deste breve trabalho.

Sem pretensão de esgotar o tema, compete esclarecer que o presente artigo tem o escopo de apenas elencar alguns aspectos relativos à doação com cláusula de reversão, também conhecida como cláusula de retorno, em especial, sobre as doações de bens imóveis.

Pois bem, o artigo 547 do Código Civil define a doação com cláusula de reversão como a hipótese em que: “...O doador pode estipular que os bens doados voltem ao seu patrimônio, se sobreviver ao donatário...”.

Em outras palavras, trata-se do ato de liberalidade pelo qual se transfere um bem a outrem com a restrição de que se o donatário/favorecido falecer antes do doador, o bem retornará a este, sem ressalvas.

Ademais, o parágrafo único do referido artigo estabelece também a proibição de tal cláusula em favor de terceiros ao determinar que: “...não prevalece cláusula de reversão em favor de terceiro...”, ou seja, a aludida restrição é personalíssima (intuitu personae) e não se estende a outras pessoas, ainda que sucessores.

Pelo caráter restritivo desta cláusula, mister se faz que ela conste expressamente no título de transmissão em que se perfectibiliza a doação, e, preferencialmente, com menção ao dispositivo do artigo 547 do Código Civil.

Ainda, cumpre ressaltar que a referida cláusula possui natureza nitidamente resolutiva.

Isso porque, operado o evento incerto da morte do donatário anterior ao falecimento do doador, restituir-se-á o bem ao doador, ainda que o imóvel tenha sido transferido a terceiros ou que o donatário tenha deixado herdeiros. Neste caso, a propriedade do adquirente é resolúvel.

Além disso, incumbe destacar que, apesar de ser a propriedade resolúvel, o imóvel não se torna inalienável, isto é, o donatário poderá dispor do bem como desejar.

Logo, diante da hipótese de disposição do imóvel com a cláusula de retorno a terceiros, para garantia de maior publicidade, é aconselhável que seja noticiada a restrição ao adquirente, no seu título aquisitivo, ainda que a citada informação já conste na matrícula, a qual, obrigatoriamente, deverá conter a cláusula.

A providência de fazer menção à cláusula no título de transmissão a terceiros trata-se de mera cautela e não requisito essencial, diferentemente da hipótese em que se doa o imóvel e institui-se a cláusula de reversão, em que a menção à restrição se faz obrigatória.

Nesse diapasão, por si só, a ausência de menção à cláusula existente sobre o imóvel não é suficiente para levar à qualificação negativa do título.

Isto é, em tais situações, não há motivos para negar-se o registro de uma escritura ou instrumento particular de transmissão a terceiros do imóvel já gravado com a cláusula de reversão.

Essa conclusão é plausível pela seguinte razão: “...diante da publicidade do registro do instrumento, o eventual adquirente do bem será sujeito passivo de ação reivindicatória após o óbito do alienante, na medida em que a resolução da propriedade conduz à extinção dos direitos reais concedidos pelo proprietário, devolvendo ao doador isenta de ônus e restrições...” (Código Civil Comentado. Coordenador Ministro Cezar Peluso. São Paulo: Manole, 2012, p. 595).

Certamente, a matrícula do imóvel é o instrumento eficaz, seguro e capaz de atestar a todos a existência da reversão com ampla publicidade. Basta verificar a certidão da matrícula do imóvel.

Neste esteio, incumbe destacar ainda que a melhor prática registral se orienta no sentido de que a cláusula de reversão receba uma averbação própria na matrícula do imóvel, após o ato de registro da doação.

Aliás, também é possível que a cláusula integre o ato da doação, como informação complementar, entretanto, nessa situação, a existência da reversão não receberá tanto destaque, nem será de fácil identificação.

Outro assunto a ser considerado é aquele atinente aos frutos e rendimentos do imóvel ou ainda, em sentido inverso, às situações de depreciação e danificação.

Em hipóteses como essas, majoritariamente, entende-se que não caberá indenização ao doador por eventuais prejuízos no imóvel e que os frutos e rendimentos pertencem ao donatário e seus sucessores.

Ademais, no tocante a questões sucessórias, na comoriência de doador e donatário, a cláusula de reversão não produzirá efeitos.

Em tal hipótese, “...exclui-se qualquer relação entre doador e donatário, sendo os bens atribuídos ao donatário transmitidos a seus sucessores...” (Código Civil Comentado. Coordenador Ministro Cezar Peluso. São Paulo: Manole, 2012, p. 595).

Além disso, com vistas à situação do cônjuge, vale colacionar a hipótese peculiar de preservar-se ou não a incomunicabilidade do imóvel doado com cláusula de reversão.

Isso porque haverá ocasiões em que o regime de bens do casamento acarretará a comunicabilidade do imóvel doado e a extensão da cláusula de reversão ao cônjuge seria, no mínimo, descabida.

No artigo “Uma Análise Notarial do Contrato de Doação”, a autora, Tabeliã Fernanda de Freitas Leitão, cita um trecho categórico da obra “Das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade”, do insigne registrador Ademar Fioranelli.

O excerto traz o seguinte: “...ele sustenta ser aconselhável que a cláusula reversiva e resolutiva venha acoplada à de incomunicabilidade, in verbis: “Deve-se preservar a incomunicabilidade do bem, já que toda alteração no estado civil do titular do direito, no caso o donatário, implicará, automaticamente, reflexos de toda ordem acerca de seu exercício, gerando graves consequências à pretensão do doador. Bastaria imaginar o casamento do donatário solteiro sob o regime da comunhão universal de bens. Algumas questões poderiam ser levantadas: a condição resolutiva se resolve em parte ou em sua plenitude por morte do donatário? Por força da condição, consolida-se a plena propriedade da metade ideal do falecido em favor do proprietário resolúvel, e a outra metade ideal para a viúva e herdeiros do falecido, considerando que com o falecimento abre-se a sucessão que se resolverá com a partilha?”...”(http://www.anoreg.org.br/…/arqu…/ArtigoDoaoFernandaLeito.pdf).

Ultrapassadas estas questões, cabe discorrer ainda sobre a possibilidade de imposição da aludida cláusula em doações com pessoas jurídicas.

Para alguns, a situação em tela não tem cabimento, por interpretar-se o conteúdo do artigo 547 do Código Civil de forma restritiva, não sendo possível, mormente, conceber-se a “morte” de uma pessoa jurídica.

Elas não falecem (interpretação literal do dispositivo legal), apenas se extinguem. E a extinção de uma pessoa jurídica recebe tratamento próprio e específico, com procedimentos expressos em lei.

Todavia, em posicionamento contrário, considera-se possível a imposição da cláusula reversiva nas doações com pessoas jurídicas, razão pela qual bastará a expressa menção da restrição no título aquisitivo e respectivo registro.

Os trâmites exatos da extinção da pessoa jurídica deverão ser observados, seja judicialmente, seja perante os órgãos de registro competentes, situações em que caberá ao registrador qualificar o título com especial cautela para proceder ao cancelamento da cláusula.

E neste contexto, exsurge-se uma relevante observação acerca da necessária diferenciação entre doação com cláusula de reversão e a hipótese de reversão da coisa doada para o patrimônio do doador em virtude de revogação por descumprimento de encargo, situação muito corriqueira em doações com pessoas jurídicas.

Como dito alhures, a cláusula reversiva deve ser expressa e vincular-se ao encerramento da pessoa jurídica ou falecimento da pessoa física.

Já a reversão do patrimônio doado por revogação ocorre quando não cumprido o encargo estabelecido entre as partes. É uma doação com encargo apenas, diferentemente da cláusula de retorno.

Derradeiramente, em relação ao advento da reversão a favor do doador, com o cancelamento da cláusula, cabem breves considerações, a começar pelo fato de que não há incidência do imposto de transmissão.

As hipóteses mais comuns e de singela operacionalização são aquelas em que, ocorrendo o falecimento do donatário, é apresentada ao registro de imóveis a respectiva certidão de óbito (original ou cópia autenticada), juntamente com o requerimento para que seja averbado do óbito e consequente reversão do bem, com assinatura do doador e reconhecimento de firma.

Por meio de tal averbação, tem-se a reversão do imóvel ao doador e cancelamento da cláusula de retorno.

Além disso, podem ser elencados outros meios e instrumentos viáveis para tanto, tais como: a) os títulos judiciais com ordens expressas nesse sentido; b) títulos hábeis a confirmar o encerramento da pessoa jurídica, acompanhados de requerimento; e c) escrituras de declaração ou revogação da cláusula de reversão, assinada por doador e donatário, com o escopo de colocar fim à restrição, a qual não é um direito indisponível.

Em vista disso, traçadas algumas linhas gerais sobre o tema, é certo asseverar que ele possui relevância no dia a dia notarial e registral, motivo pelo qual deve ser observado com atenção e cautela.

Decerto, é fundamental antever situações das quais possam se originar problemas futuros, a exemplo de: a) casos em que há constituição de garantia sobre os imóveis clausulados; b) falecimento de apenas um dos doadores casados entre si antes da morte do donatário e efeitos sucessórios para o doador vivo e sucessores do donatário; c) donatário casado sob o regime da comunhão universal de bens e comunicabilidade; d) comoriência; e) extinção de pessoas jurídicas e sua prova; e) possibilidade de proceder ao cancelamento de todos os atos posteriores à doação com cláusula de reversão em virtude do falecimento do donatário.

Portanto, as sutilezas da imposição de uma cláusula reversiva não podem ser negligenciadas ou tratadas de forma diminuta.

* Isabel Novembre Sangali

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